Artigos | Postado no dia: 26 junho, 2025
Supressio na Jurisprudência do STJ: Boa-fé, Confiança e Limites ao Exercício dos Direitos

Você sabia que a inércia prolongada no exercício de um direito pode, em determinadas situações, impedir o seu titular de voltar a exigi-lo? Esse é o efeito da supressio, uma teoria derivada da boa-fé objetiva, que vem sendo cada vez mais aplicada pelo STJ.
A supressio protege a confiança, pune comportamentos contraditórios e tem impacto direto na responsabilidade civil. Está presente em casos de contratos, planos de saúde, alienações fiduciárias, locações, condomínios e até nas relações empresariais.
Quer saber como isso funciona na prática? No nosso texto de hoje, reunimos os principais julgados do STJ que aplicaram – ou afastaram – essa teoria. Leia e descubra se ela também pode ser aplicada no seu caso.
Texto explicativo:
O Direito Civil contemporâneo não se limita à literalidade dos contratos ou das normas, mas avança na proteção da confiança, da lealdade e da cooperação nas relações jurídicas. A boa-fé objetiva é a matriz desse sistema, e dela se originam importantes institutos, como a supressio, que impede o exercício de um direito quando sua não utilização, por período prolongado, gera na contraparte a legítima expectativa de que esse direito não será mais exercido.
Para que a supressio se configure, não basta a mera passagem do tempo. É indispensável a presença de quatro elementos: a existência de uma posição jurídica conhecida e exercitável; a abstenção qualificada e ostensiva do exercício desse direito; a geração de uma expectativa legítima na contraparte; e a posterior tentativa de exercer o direito de forma contrária à confiança criada.
A supressio não se confunde com prescrição ou decadência. Enquanto estas operam efeitos pelo simples decurso do tempo, a supressio está vinculada à violação da boa-fé, funcionando como um mecanismo de contenção do exercício abusivo dos direitos.
O Superior Tribunal de Justiça tem enfrentado o tema com frequência, analisando com rigor quando é possível reconhecer o instituto. No âmbito das relações condominiais, são comuns os debates sobre o uso exclusivo de áreas comuns. O STJ reconheceu, no Recurso Especial nº 2.187.886/SP, que o uso exclusivo de uma laje comum por mais de doze anos, sem oposição dos demais condôminos, consolidou uma situação protegida pela supressio, impossibilitando que o condomínio retomasse essa posse sem fato novo.
Decisão semelhante foi adotada no AgInt no Recurso Especial nº 2.003.960/RJ, no qual os proprietários, durante 30 anos, utilizaram com exclusividade uma área comum sem causar prejuízo ao condomínio. A Corte afirmou que, nesses casos, a proteção se dá não por transformar a posse em propriedade, mas por impedir a retomada injustificada, sem alteração do estado de coisas.
Contudo, a supressio não serve para acobertar situações que violam a boa-fé desde sua origem. No Recurso Especial nº 2.170.566/RJ, um condômino tentou manter o pagamento de uma única cota condominial, mesmo após ter unificado fisicamente duas unidades sem a ciência e autorização do condomínio. O STJ afastou a tese, afirmando que a cobrança a menor decorreu de erro, e não de tolerância, não sendo possível converter essa falha administrativa em benefício do devedor.
O mesmo raciocínio se aplicou no AgInt no AREsp nº 2.230.704/PR, em que o proprietário de uma loja comercial pretendia afastar sua obrigação de pagar cotas condominiais sob o argumento de que, durante décadas, jamais foram cobradas. O tribunal foi enfático ao afirmar que não se pode aplicar a supressio para transformar a falta de cobrança em inexigibilidade definitiva das obrigações futuras.
Nos contratos de alienação fiduciária, a Corte também faz aplicação rigorosa do instituto. No REsp nº 2.135.500/GO, o credor permaneceu por dois anos sem registrar a alienação fiduciária, realizando esse registro apenas quando o devedor ajuizou ação de rescisão contratual. O STJ considerou essa conduta abusiva, vedando a utilização do procedimento de execução extrajudicial previsto na Lei nº 9.514/97, justamente porque a ausência deliberada do registro criou, na parte contrária, a legítima expectativa de que a relação jurídica não se submeteria à alienação fiduciária.
Em contrapartida, no REsp nº 2.694.342/PR, a supressio foi afastada. O contrato de fornecimento de gases industriais previa cláusula de consumo mínimo, a ser verificada apenas ao final do contrato. O STJ concluiu que essa cláusula não permite falar em inércia, pois a verificação e a exigibilidade eram juridicamente postergadas, não havendo expectativa de que a credora teria abdicado do direito.
O mesmo entendimento ocorreu no REsp nº 2.088.764/SP, que destacou que a ausência de negociação, por si só, não configura supressio quando há cláusulas expressas regulando o momento do exercício do direito.
Quando se trata de contratos de locação, a jurisprudência também oferece exemplos relevantes. No AgInt no AREsp nº 1.691.733/SP, a Corte aplicou a supressio contra um locador que, por mais de cinco anos, deixou de atualizar os valores dos aluguéis, gerando no locatário a legítima expectativa de que aquele valor era definitivo, vedando, assim, qualquer cobrança retroativa.
Por outro lado, o STJ é claro ao afirmar que a supressio não pode ser utilizada como instrumento para transformar relações jurídicas. Foi exatamente essa a fundamentação do REsp nº 1.309.800/AM, que tratava da utilização de uma balsa por sete anos sem pagamento. A Corte reconheceu que, em razão da inércia do proprietário, formou-se a legítima expectativa de que se tratava de um comodato, mas jamais seria possível converter tal relação em contrato oneroso retroativo.
Nos planos de saúde, o instituto também teve reconhecida sua aplicação. No REsp nº 1.869.475/MS, a operadora, por mais de dezoito anos, autorizou procedimentos fora da área de abrangência contratual, criando no beneficiário a expectativa de que essa prática era aceita. O STJ afirmou que, nesse cenário, não poderia a operadora, de forma abrupta, voltar a impor as limitações geográficas do contrato.
Contudo, no AgInt no AREsp nº 2.569.921/SP, a supressio foi afastada porque a manutenção do beneficiário no plano decorreu de decisões judiciais, e não de uma liberalidade ou comportamento contraditório da operadora, não sendo possível invocar a boa-fé para consolidar situações impostas por força judicial.
Em outro plano de saúde, no AgInt no AREsp nº 2.129.853/SP, o STJ reiterou que não se aplica a supressio quando há decisão anterior estabelecendo que os valores seriam discutidos na fase de liquidação, o que impede qualquer expectativa de inexigibilidade dos valores.
O mesmo rigor se vê em relações envolvendo valores de natureza cogente. Nos Recursos Especiais nºs 1.694.324/SP e 1.532.681/SP, o STJ afastou a supressio para multas relativas ao vale-pedágio, destacando que se trata de obrigação de ordem pública, não suscetível de ser afastada por omissão ou tolerância.
Nas execuções judiciais, também ficou estabelecido que a supressio não se aplica para impedir a incidência de juros e correção monetária enquanto pendente o cumprimento de sentença. Isso ficou claro no julgamento do REsp nº 1.717.144/SP e do AgInt no AREsp nº 2.613.752/MS, nos quais a Corte afirmou que não é possível gerar expectativa de inexigibilidade de encargos decorrentes do próprio inadimplemento.
Os julgados analisados revelam que o STJ tem conferido à supressio uma aplicação extremamente criteriosa, sempre vinculada à boa-fé objetiva e à análise detalhada do comportamento das partes. É um instituto que protege quem atua com lealdade nas relações jurídicas, pune comportamentos contraditórios, mas não serve de escudo para quem busca se beneficiar de sua própria torpeza ou de atos praticados em desconformidade com o direito.
A aplicação da supressio, portanto, é uma poderosa ferramenta de estabilização das relações jurídicas e de promoção da segurança nas contratações civis, empresariais, consumeristas e condominiais, operando como limite ético e jurídico ao exercício dos direitos.
Referências
- AgInt nos EDcl no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2491214 – MS (2023/0381355-1), Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, (julgado em data não especificada no corpo do documento), DJe de 24/02/2025 (data de publicação do documento).
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1312484 – RJ (2017/0114945-8), Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quarta Turma, julgado em 24/03/2025, DJe de 25/03/2025.
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.532.681 – SP (2019/0188701-1), Relator: Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 04/02/2020, DJe de 13/02/2020.
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1691733 – SP (2020/0089449-7), Relator: Ministro Raul Araújo, (julgado em data não especificada no corpo do documento), DJe de 21/10/2024 (data de publicação do documento).
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2382756 – RS (2023/0193808-3), Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 09/10/2023, DJe de 11/10/2023.
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2511425 – SP (2023/0429735-8), Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, (julgado em data não especificada no corpo do documento), DJe de 24/04/2025 (data de publicação do documento).
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2569921 – SP (2024/0046287-8), Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 25/03/2025, DJe de 27/03/2025.
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2613752 – MT (2024/0129240-6), Relator: Ministro Moura Ribeiro, julgado em 18/02/2025, DJe de 20/02/2025 (data de publicação do documento).
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2694342 – SP (2025/0512595-6), Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 07/05/2025, DJe de 12/05/2025.
- AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2745096 – MS (2024/0346861-0), Relator: Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 17/03/2025, DJe de 20/03/2025.
- AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1751973 – RS (2018/0164084-1), Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21/03/2024, DJe de 21/03/2024 (data de publicação do documento).
- AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1920319 – SP (2019/0351559-5), Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 08/04/2025, DJe de 27/05/2025 (data de publicação do documento).
- AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 2003960 – RJ (2022/0074201-7), Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 02/09/2024, DJe de 04/09/2024.
- AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 2129853 – SP (2024/0083863-1), Relator: Ministro Raul Araújo, (julgado em data não especificada no corpo do documento), DJe de 16/09/2024 (data de publicação do documento).
- EDcl no AgInt nos EDcl no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2668777 – SP (2024/0216650-7), Relatora: Ministra Daniela Teixeira, Terceira Turma, julgado em 08/04/2025, DJe de 10/04/2025.
- RECURSO ESPECIAL Nº 1.309.800 – AM (2012/0033585-0), Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/08/2017, DJe de 21/09/2017.
- RECURSO ESPECIAL Nº 1.694.324 – SP (2016/0314411-4), Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, Relator para Acórdão: Ministro MOURA RIBEIRO, Terceira Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 05/12/2018.
- RECURSO ESPECIAL Nº 1717144 – SP (2017/0185812-3), Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 13/12/2022, DJe de 28/02/2023.
- RECURSO ESPECIAL Nº 1869475 – MS (2020/0076796-2), Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 25/04/2025, DJe de 29/04/2025.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2029227 – RJ (2022/0200772-3), Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 13/05/2025, DJe de 23/05/2025.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2030882 – PR (2022/0121428-0), Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 06/08/2024, DJe de 15/08/2024.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2088764 – SP (2023/0269493-0), Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 03/10/2023, DJe de 09/10/2023.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2135500 – GO (2023/0314493-7), Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 05/11/2024, DJe de 08/11/2024.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2170566 – RJ (2024/0072060-7), Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/03/2025, DJe de 21/03/2025.
- RECURSO ESPECIAL Nº 2187886 – SP (2024/0185983-1), Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 06/05/2025, DJe de 13/05/2025.
- AgInt no AREsp n. 1.972.613/RJ, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado em 22/08/2017, DJe 21/09/2017.