Artigos | Postado no dia: 30 junho, 2025
Surrectio: quando o comportamento gera direitos — mesmo fora do contrato

Você sabia que, mesmo sem estar no contrato, certos direitos podem nascer da conduta das partes ao longo do tempo? É o caso da surrectio, uma figura jurídica que protege quem confiou em um comportamento reiterado e foi surpreendido por uma mudança repentina.
Planos de saúde que sempre autorizaram um tratamento, bancos que cobraram taxas por anos sem oposição, seguradoras que continuaram recebendo os prêmios mesmo após a rescisão… tudo isso pode dar origem a direitos não escritos, mas juridicamente válidos.
Se você já passou por uma situação assim, ou se conhece alguém que confiou na conduta da outra parte e foi prejudicado, saiba: o Judiciário já reconheceu essas situações como abusivas — e você pode ter direito à reparação.
Texto Explicativo
A teoria da surrectio, amplamente consolidada na jurisprudência brasileira, decorre da boa-fé objetiva, especialmente do princípio da proteção da confiança legítima. Trata-se do surgimento de um direito ou expectativa juridicamente protegida em decorrência da prática reiterada de determinado comportamento por uma das partes de uma relação contratual ou jurídica, ainda que tal direito não esteja originalmente previsto no pacto.
A surrectio aparece como corolário do princípio da vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), funcionando como espécie de tutela à confiança investida em determinada conduta reiterada. Em outras palavras, quem age de maneira constante por longo tempo, criando uma expectativa legítima na outra parte, não pode, de forma abrupta, contradizer essa postura e frustrar a confiança gerada, sob pena de incorrer em abuso de direito (art. 187 do Código Civil).
O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a aplicação da surrectio nos mais variados contextos. No REsp 1.005.303/SP, por exemplo, tratava-se de um seguro de vida coletivo, que havia sido formalmente rescindido, mas cujos prêmios continuaram sendo pagos por mais de dois anos pelo segurado, sem oposição da seguradora. A Corte entendeu que essa conduta reiterada gerou uma expectativa legítima de manutenção do contrato, caracterizando surrectio.
Em outro caso marcante, REsp 1.789.667/RJ, discutiu-se a continuidade do pagamento de pensão alimentícia após o término do prazo pactuado judicialmente. O STJ, reconhecendo a vulnerabilidade da credora e a prestação ininterrupta por 15 anos após o fim do acordo, entendeu pela incidência da surrectio, reformando decisão anterior e reconhecendo direito alimentar derivado da confiança criada pelo comportamento do ex-companheiro.
Ainda no âmbito dos planos de saúde, o AREsp 2.283.580/SP julgou o caso de um consumidor cujo tratamento havia sido autorizado por anos, sem previsão expressa contratual. O plano, de forma abrupta, passou a negar a cobertura. O STJ considerou que, ao autorizar reiteradamente o procedimento, o plano gerou uma expectativa legítima, e a negativa posterior violava a boa-fé objetiva, caracterizando comportamento contraditório e ensejando surrectio.
No REsp 1784914/SP, o STJ reforçou o entendimento de que a surrectio pode surgir mesmo na ausência de manifesta oposição por parte do credor, quando a conduta do devedor revela a aceitação contínua de determinada prática contratual que não era inicialmente prevista. Essa jurisprudência sustenta que o Direito deve acompanhar a dinâmica das relações sociais e contratuais, priorizando a estabilidade e a boa-fé.
No julgamento do AgInt no REsp 935.811/SE, o Tribunal afirmou que “a prática reiterada, tolerada e não impugnada por longo período pode gerar efeitos jurídicos contratuais, ainda que não expressamente pactuada”, reconhecendo a surrectio em favor do consumidor.
O REsp 2029227/SP é outro exemplo paradigmático. Em um contexto de relação bancária, uma instituição financeira, após anos aceitando determinada forma de amortização da dívida, resolveu unilateralmente exigir condições mais rigorosas. O STJ afastou essa mudança abrupta por violar a expectativa criada, aplicando a surrectio para restabelecer as condições anteriormente aceitas.
A jurisprudência demonstra que a surrectio não se limita ao plano contratual formal. No REsp 1309800/SP, mesmo não havendo previsão contratual expressa, o STJ reconheceu que a prática reiterada do fornecedor criou direitos ao consumidor.
É fundamental destacar que a surrectio é conceito que se diferencia da supressio. Enquanto esta última implica a perda do direito pelo não uso (abstenção prolongada que gera expectativa de não exigibilidade), a surrectio opera pela aquisição de um direito ou expectativa a partir do uso constante. Ambas se vinculam à boa-fé objetiva, mas por caminhos diversos.
A jurisprudência do STJ também confirma que a surrectio tem natureza jurídica distinta da novação e da alteração contratual formal. Ela opera sobre comportamentos e expectativas, e não sobre declarações expressas de vontade. Sua base está no comportamento tácito reiterado, que, aliado à confiança legítima, gera um novo estado de coisas, passível de proteção pelo ordenamento.
A doutrina é uníssona quanto à inserção da surrectio no plano da boa-fé objetiva, principalmente na sua função integrativa e restritiva. A surrectio cria deveres de conduta que não estavam inicialmente no contrato, mas que surgem por força das interações entre as partes ao longo da execução do negócio jurídico.
É importante, ainda, distinguir a surrectio da supressio. Ambas decorrem da boa-fé, mas operam de formas opostas: enquanto a supressio impede o exercício de um direito que deixou de ser exercido ao longo do tempo, a surrectio reconhece o surgimento de um direito pelo comportamento que passou a ser praticado — ainda que não previsto no instrumento contratual.
Assim, a surrectio não viola o pacta sunt servanda, mas o complementa sob a ótica da função social do contrato e da vedação ao abuso de direito. Em muitos casos, como ilustram os julgados analisados, é justamente a surrectio que impede injustiças praticadas sob o manto de formalismos que se chocam com a realidade concreta vivenciada pelas partes.
Em suma, o STJ tem aplicado o instituto da surrectio como forma de equilibrar as relações jurídicas e proteger expectativas legítimas de quem, de boa-fé, confiou na conduta da outra parte. Esse movimento jurisprudencial reforça a centralidade da boa-fé objetiva no Direito Civil contemporâneo, não como cláusula aberta vaga, mas como norma de eficácia concreta, vocacionada a impedir comportamentos contraditórios, injustos e desleais.
Referências Bibliográficas:
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.005.303/SP. Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.789.667/RJ. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Relator para o acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AgInt no TP nº 1.816/BA. Relator Ministro Marco Buzzi. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2.283.580/SP. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.887.705/SP. Relator Ministro Moura Ribeiro. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.918.599/RJ. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp nº 935.811/SE. Relator Ministro Raul Araújo. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.795.558/PR. Relator Ministro Raul Araújo. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 1.206.818/SP. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 1005303/PR. Relator Ministro João Otávio de Noronha. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 960486/PR. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. EDcl no REsp nº 1249718/MG. Relator Ministro Sidnei Beneti. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. EDcl no REsp nº 1200677/MG. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1309800/SP. Relator Ministro Sidnei Beneti. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1338432/SP. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1426413/SP. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 953389/RJ. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 1478126/SP. Relator Ministro Raul Araújo. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 1795558/RS. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 1998336/MG. Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 1990352/SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2083177/SP. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2071861/SP. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2050967/SP. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2130332/SP. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 2540218/SP. Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 2543295/SP. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. AInt no REsp nº 2569921/SP. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1784914/SP. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 2029227/SP. Relator Ministro Raul Araújo. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 29/06/2025 às 09h15).