Artigos | Postado no dia: 25 agosto, 2025

A descoberta de um filho após o testamento, pode romper o testamento?!

A sucessão testamentária é uma manifestação da autonomia da vontade do indivíduo em dispor de seus bens para depois de sua morte. Contudo, essa vontade encontra limites e proteções legais, especialmente quando há a superveniência de herdeiros necessários, como filhos. O Art. 1.973 do Código Civil de 2002 (correspondente ao Art. 1.750 do Código Civil de 1916) é a norma central que aborda a possibilidade de rompimento do testamento nesta situação. Este rompimento, conforme entendimento do STJ, é uma disposição legal que se configura como uma espécie de revogação tácita do testamento, pela superveniência de um fato que retira a eficácia da disposição patrimonial.

A Presunção Legal por Trás do Rompimento

A base do Art. 1.973 do Código Civil é uma presunção legal. A lei presume que, se o testador tivesse conhecimento da existência do descendente ao tempo em que testou, ele não teria feito o testamento ou teria disposto de seus bens de uma forma diferente. Essa presunção é tão abrangente que a lei não se limita a exigir o resguardo da legítima do novo herdeiro, mas sim prevê a verdadeira revogação de todas as disposições testamentárias, como se o testamento nunca tivesse existido.

Conforme a lição de Clóvis Beviláqua, citada nos julgados, “feito o testamento em ocasião, em que o testador podia dispor livremente do que era seu, se, depois, lhe sobrevém um descendente, ou vem a saber que existe algum, que supunha falecido, o estado de espírito sofre mudança radical, não pode ser o mesmo que era ao tempo da feitura do testamento, quanto à legítima do descendente, nem quanto à porção disponível”. Essa mudança de estado de espírito presumida é o que justifica a ruptura.

Condição Essencial para o Rompimento: Inexistência ou Desconhecimento de Prole

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona ao interpretar o Art. 1.973 do Código Civil de forma restritiva. Para que o testamento seja rompido pela superveniência de descendente, a condição essencial é que, à época da disposição testamentária, o falecido testador não tivesse prole (filhos) ou não a conhecesse.

A doutrina majoritária, citada nos acórdãos, como Zeno Veloso, Mauro Antonini, Sílvia de Salvo Venosa e Carlos Maximiliano, converge para este entendimento: a superveniência de um descendente sucessível só é causa de rompimento do testamento quando o testador não tinha qualquer descendente. Se o testador já possuía descendentes quando testou, e outro(s) descendente(s) surge(m) depois da lavratura do testamento, o rompimento não ocorre. A razão para isso é que a existência prévia de outros descendentes não o inibiu de testar, presumindo-se, nesse caso, que ele testaria mesmo sobrevindo outro.

Vejamos os cenários em que os julgados apresentados demonstram a não ocorrência do rompimento, aprofundando a análise:

  1. Testador já possuía descendentes ao tempo da lavratura do testamento

Este é um dos pontos mais recorrentes e cruciais nas decisões do STJ. Diversos acórdãos reiteram que, se o testador já tinha filhos ou outros descendentes ao tempo em que elaborou o testamento, a superveniência de outro não o rompe.

  • AgRg no Agravo em Recurso Especial Nº 229.064 – SP (2012/0190055-9), Rel. Min. Luis Felipe Salomão:
  • Neste caso, a Corte Superior confirmou que o Art. 1.973 do CC/2002 não se aplica na hipótese de o falecido já possuir descendente e sobrevier outro(s) depois da lavratura do testamento. A situação fática analisada envolvia um testador que, ao lavrar o testamento, já tinha uma filha (que, inclusive, foi beneficiária do ato de última vontade). O nascimento de um novo filho, décadas depois, não teve o efeito de romper o testamento, pois a lei exige a inexistência ou o desconhecimento de descendentes. A decisão cita doutrinadores como Zeno Veloso e Mauro Antonini, que defendem que se o testador já tem descendente e testa, a superveniência de outro não provoca a ruptura. A opinião contrária de Orlando Gomes é considerada isolada na doutrina nacional.
  • REsp 1.169.639 – MG (2009/0232432-9), Rel. Min. Luis Felipe Salomão:
  • Este julgado reforça o entendimento. O testador, ao elaborar o testamento em 2002, já possuía esposa e dois filhos (herdeiros necessários), que foram contemplados na disposição testamentária. A superveniência de um terceiro filho (reconhecido em 2005, antes do falecimento em 2006) não levou ao rompimento do testamento. A fundamentação é clara: a disposição da lei visa a preservar a vontade do testador e, a um só tempo, os interesses de herdeiro superveniente que, em razão de uma presunção legal, poderia ser contemplado. No entanto, se o testador já tinha prole ao testar, não se presume que sua vontade seria diferente. Além disso, o acórdão destaca que, no caso concreto, o descendente superveniente nasceu um ano antes da morte do testador, e se fosse de sua vontade, ele teria alterado o testamento para contemplá-lo, o que afasta a presunção legal de que testaria de forma diversa.
  • REsp 594.535 – SP (2003/0167072-8), Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa:
  • Aqui, a discussão era sobre a superveniência de um herdeiro neto. A Corte Superior decidiu que “quando a lei fala em superveniência de descendente sucessível, como causa determinante da caducidade do testamento, leva em consideração o fato de que seu surgimento altera, por completo, a questão relativa às legítimas. Aqui, tal não ocorreu, já que resguardou-se a legítima do filho e, consequentemente, do neto“. Ou seja, se o testador já tinha filhos e a legítima dos herdeiros necessários (incluindo o superveniente por representação) foi resguardada, o rompimento não se justifica.
  • REsp 820.814 – SP (2006/0031403-9), Rel. Min. Nancy Andrighi, citando REsp 539.605/SP e REsp 240.720/SP:
  • Este julgado, embora focado em fideicomisso, reafirma o entendimento sobre o Art. 1.973 CC/02. Cita precedentes (REsp 539.605/SP e REsp 240.720/SP) que estabelecem que a condição para romper o testamento é o testador não possuir ou não conhecer descendente sucessível ao tempo do ato. Se ele já tinha outros, “o surgimento de um novo herdeiro não torna inválido o testamento de bens integrantes da parte disponível para beneficiar o cônjuge”.

Em síntese, a linha de raciocínio é que a lei presume que a ausência de prole ou o desconhecimento dela é o que motivaria uma alteração radical na vontade do testador. Se ele já tinha filhos e mesmo assim testou, subentende-se que sua intenção testamentária não seria fundamentalmente alterada pela vinda de mais um.

  1. Testador se limitou a dispor da “parte disponível” e preservou a “legítima”

Outro fator crucial que afasta o rompimento do testamento é a preservação da legítima dos herdeiros necessários. O Código Civil brasileiro assegura aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge) o direito a uma porção mínima da herança (a legítima), que corresponde a 50% dos bens do falecido. O testador só pode dispor livremente da outra metade, a parte disponível.

  • REsp 1.273.684 – RS (2011/0202351-5), Rel. Min. Sidnei Beneti:
  • Este caso é um exemplo paradigmático. O testador fez um testamento que dispunha sobre a parte disponível de seus bens em favor de cinco filhos já reconhecidos, preservando a legítima. Posteriormente, um sexto filho (Erlon) foi reconhecido judicialmente após a morte do testador. A Corte Superior decidiu que não ocorreu o rompimento do testamento, pois este, “preservada a legítima, outorga da parte disponível em favor de todos os filhos reconhecidos”. O Ministério Público Federal, cujo parecer foi acolhido pela decisão do STJ, argumentou que a desconsideração da última vontade do testador só é possível para salvaguardar direitos de herdeiro necessário preterido, e que não se aplica o Art. 1.973 do Código Civil quando o testador já possuía herdeiros necessários e dispôs de parte de seus bens como lhe permite a lei, o que retira a presunção de que disporia de modo diverso se soubesse da existência de outro filho.
  • A decisão explicitou que “o desejo do testador é que todos os seus herdeiros/filhos fossem tratados de forma igualitária e como havia doado bens ao recorrido/agravante, determinava a colação dos valores dos bens doados, para que nenhum herdeiro fosse aquinhoado de forma privilegiada”. A vontade do testador, expressa no testamento, não foi afetada pela superveniência de um outro filho, especialmente porque o testamento se restringia à parte disponível e visava à equalização patrimonial entre os filhos.
  • O acórdão também faz referência ao Art. 1.975 do Código Civil, que estabelece que não se rompe o testamento se o testador dispuser de sua metade (a parte disponível), não contemplando os herdeiros necessários de cuja existência saiba, ou quando os exclua dessa parte. Essa disposição legal reforça a validade do testamento quando a legítima é respeitada.

Portanto, a interpretação dos tribunais é que se o testador já agiu com a consciência de que havia herdeiros necessários e se restringiu a dispor da parte que legalmente lhe cabia (a disponível), a superveniência de um novo herdeiro não altera a validade do testamento quanto a essa parte, pois os direitos do novo herdeiro sobre a legítima permanecem garantidos pela lei.

  1. Testador tinha conhecimento prévio da existência do descendente superveniente

A presunção de ignorância do testador sobre a existência do descendente é fundamental para o rompimento. Se for demonstrado que o testador, na verdade, tinha conhecimento da existência desse descendente, o rompimento é afastado, mesmo que a formalização do vínculo ou a declaração no testamento sejam ausentes ou “equivocadas”.

  • REsp 1.615.054 – MG (2016/0190168-8), Rel. Min. Nancy Andrighi:
  • Este julgado é emblemático. A testadora (avó do recorrente) havia declarado em seu testamento a inexistência de herdeiros necessários. Contudo, o conjunto probatório demonstrou que ela tinha total ciência da existência de seu neto (o recorrente), muito antes de testar, em virtude de uma ação de investigação de paternidade. Mais do que isso, ela mantinha um forte relacionamento afetuoso com ele, inclusive fazendo doações de imóveis. A confecção do testamento, inclusive, foi posterior ao curso da ação de investigação de paternidade.
  • A decisão do STJ foi no sentido de que a prova em contrário – de que o testador sabia da existência do descendente sucessível – mesmo existindo declaração do testador de que não tinha herdeiros necessários, impede a incidência do quanto disposto no art. 1.973 do Código Civil. O rompimento do testamento, que acarreta sua invalidade geral, é uma medida extrema que só é admitida diante da singular revelação de que o testador não tinha conhecimento da existência de descendente sucessível. No caso, a vontade da testadora foi preservada, já que, apesar da declaração equivocada, ela sabia da existência do neto e até o havia contemplado com parte de seu patrimônio em vida.
  • Este precedente destaca a primazia da vontade real do testador, buscando-se a real expressão de sua vontade em seu cotidiano e relações sociais.
  • REsp 1.169.639 – MG (2009/0232432-9), Rel. Min. Luis Felipe Salomão:
  • Neste caso, embora não seja o ponto central, o acórdão menciona que o descendente superveniente (filho havido fora do casamento) nasceu um ano antes da morte do testador, e que “se fosse de sua vontade, teria alterado o testamento para contemplar o novo herdeiro”. Isso sugere que a inação do testador em alterar o testamento, tendo tempo para fazê-lo e presumivelmente conhecimento do filho, afasta a presunção de que ele disporia de forma diversa.

Portanto, a mera declaração formal no testamento de que não há herdeiros necessários pode ser superada por provas de que o testador, de fato, tinha conhecimento da existência do descendente, invalidando assim o pedido de rompimento.

  1. Legitimidade para Requerer o Rompimento: Foco no Herdeiro Superveniente

A finalidade da lei (Art. 1.973) é proteger os interesses do herdeiro superveniente, que a lei presume que o testador teria querido contemplar se soubesse de sua existência.

  • REsp 1.169.639 – MG (2009/0232432-9), Rel. Min. Luis Felipe Salomão:
  • Este julgado faz uma importante distinção: “somente o herdeiro superveniente poderia reclamar o rompimento do testamento em razão dos arts. 1.973 e 1.974 do Código Civil, porquanto, no que concerne aos herdeiros já existentes, não há presunção de que, quanto a eles, o de cujus testaria de forma diversa”. Ou seja, a iniciativa de buscar o rompimento deveria ser do próprio herdeiro cuja existência era desconhecida ou que sobreveio. Herdeiros já existentes e conhecidos não teriam, em princípio, legitimidade para pleitear o rompimento com base nesse fundamento, pois a presunção legal não se aplica a eles.
  • REsp 1.273.684 – RS (2011/0202351-5), Rel. Min. Sidnei Beneti:
  • No caso, o pedido de rompimento foi feito por um filho (Fernando Tarragô Bastos Filho) que já era herdeiro necessário e testamentário, e que havia recebido adiantamento da legítima. O filho superveniente (Erlon) inclusive concordava com a validade do testamento. A decisão final do STJ, ao negar o rompimento, implicitamente reforça a ideia de que a vontade do testador deve ser preservada e que o pedido de rompimento por um herdeiro já existente, que busca alterar a equalização patrimonial planejada pelo testador, não se sustenta.

Esta nuance processual é vital, pois direciona a aplicação da norma para seu verdadeiro propósito: salvaguardar o direito do herdeiro que, de outra forma, seria injustamente preterido por um testamento elaborado em ignorância de sua existência.

  1. Rompimento x Nulidade/Redução: Distinções Cruciais

É importante distinguir o rompimento (ou caducidade legal) do testamento por superveniência de descendente da nulidade ou redução de disposições testamentárias.

  • REsp 1.615.054 – MG (2016/0190168-8), Rel. Min. Nancy Andrighi:
  • Este julgado esclarece que a nulidade das disposições testamentárias que excedem a parte disponível do patrimônio do testador se circunscreve ao excesso, resultando na redução das disposições testamentárias ao quanto disponível, nos termos dos Arts. 1.967 e 1.968 do Código Civil. Não se trata de romper o testamento em sua totalidade, mas de ajustá-lo aos limites legais.
  • A avaliação se houve invasão da legítima e a consequente redução são matérias que devem ser adstritas ao curso do inventário. A Corte enfatiza que, se for constatada uma indevida invasão da legítima, a redução das disposições testamentárias para adequação à parte disponível será prontamente fixada, preservando os direitos do descendente sucessível. Ou seja, mesmo que a testadora tenha feito uma declaração “falsa” de não ter herdeiros necessários, isso não leva automaticamente à nulidade total do testamento ou ao seu rompimento se o objetivo era dispor da parte disponível e a legítima pode ser resguardada.

Isso significa que, mesmo que um testamento beneficie excessivamente um herdeiro ou um terceiro, invadindo a legítima dos herdeiros necessários (incluindo o superveniente), a solução jurídica não é necessariamente o rompimento total do testamento, mas sim sua adequação, limitando-o à parte disponível legalmente permitida. A preservação da vontade do testador é o princípio que guia essa interpretação, buscando-se cumprir a disposição de última vontade dentro dos limites da lei.

Considerações Finais: A Complexidade da Vontade e da Lei

A análise dos julgados do STJ revela uma interpretação coesa e aprofundada do Art. 1.973 do Código Civil. O rompimento do testamento pela superveniência de um descendente não é uma medida automática, mas sim uma exceção à regra da preservação da vontade do testador.

Os tribunais buscam a real intenção do testador. Se ele já tinha outros filhos ao testar, se o testamento se restringiu à parte disponível e a legítima foi preservada, ou se havia conhecimento prévio da existência do descendente superveniente, a presunção legal que fundamenta o rompimento (a de que o testador agiria de forma diferente se soubesse do descendente) é afastada. A lei procura proteger o herdeiro que seria injustamente preterido por desconhecimento, mas não visa anular um testamento quando a vontade do testador é clara e os direitos dos herdeiros necessários são, em última instância, resguardados.

Em conclusão, a descoberta de um filho (ou outro descendente) após a elaboração do testamento só levará ao seu rompimento se o testador, na data do documento, não possuía nenhum descendente ou não tinha conhecimento de sua existência, e desde que a disposição testamentária não tenha resguardado a legítima ou não se limite à parte disponível. A primazia é pela manutenção da vontade do falecido, corrigindo-se apenas o necessário para garantir os direitos sucessórios dos herdeiros necessários, especialmente a legítima, caso tenha sido atingida.