Artigos | Postado no dia: 18 setembro, 2025

Esposa e filhos: como se divide a herança?

O cônjuge não é excluído da herança quando há filhos. Mas em quais situações ele herda junto com os descendentes?

A sucessão legítima é uma das áreas mais delicadas do direito civil, pois envolve não apenas normas jurídicas, mas também sentimentos, relações afetivas e conflitos familiares. Dentro da ordem da vocação hereditária, estabelecida pelo artigo 1.829 do Código Civil, os descendentes ocupam a primeira classe de herdeiros, recebendo a herança em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

Esse tema, é essencial para compreender como se distribui o patrimônio entre filhos e cônjuge, em especial diante das peculiaridades trazidas pelos diferentes regimes de bens e pela evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).


Base legal da concorrência

O artigo 1.829, inciso I, do Código Civil dispõe:

“A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.”

Essa redação revela três hipóteses de exclusão da concorrência do cônjuge com os filhos:

  • casamento sob comunhão universal;
  • casamento sob separação obrigatória;
  • casamento sob comunhão parcial sem bens particulares do falecido.

Nos demais casos, o cônjuge concorrerá com os descendentes, o que gera efeitos patrimoniais significativos e, muitas vezes, surpreendentes para as famílias.

 

O impacto do regime de bens

O regime de bens escolhido no casamento ou presumido na união estável influencia diretamente na sucessão.

  • Comunhão universal de bens: todos os bens são comuns. O cônjuge já é meeiro e não concorre com os filhos na herança, exceto quanto a bens particulares (por exemplo, recebidos com cláusula de incomunicabilidade).
  • Comunhão parcial de bens: os bens adquiridos onerosamente durante o casamento pertencem a ambos. O cônjuge já é meeiro deles, mas herdará em concorrência com os filhos apenas sobre os bens particulares do falecido.
  • Separação obrigatória de bens: prevista no art. 1.641 CC, exclui o cônjuge da herança. O STJ, pela Súmula 377, admite apenas a meação dos aquestos, mas não a concorrência sucessória.
  • Separação convencional: ao contrário do que muitos imaginam, o cônjuge tem direito de concorrer com os descendentes, conforme consolidado pelo STJ (REsp 1.382.170/SP).
  • Participação final nos aquestos: cada cônjuge administra seu patrimônio durante o casamento, mas na dissolução há partilha dos bens adquiridos onerosamente. Além da meação, o cônjuge concorrerá com os descendentes.

Esse quadro mostra que o regime de bens, muitas vezes escolhido sem a devida orientação jurídica, pode ter efeitos relevantes na sucessão.


A natureza jurídica da concorrência

A concorrência do cônjuge com os filhos gera uma situação em que ele participa da sucessão como herdeiro necessário (art. 1.845 CC). Isso significa que, assim como os descendentes, o cônjuge tem direito à meação, que corresponde a metade do patrimônio formado com o falecido.

Contudo, a divisão da herança entre cônjuge e filhos não é proporcional em todos os casos. O Código Civil prevê que o cônjuge herda em igualdade de condições com os descendentes, recebendo “por cabeça” quando concorre com filhos, e por “estirpe” quando há netos representando filhos pré-mortos.

Exemplo prático:
Joaquim falece casado com Alicia em comunhão parcial de bens, deixando dois filhos (José e João) e dois netos (Poli e Manu), filhos de Policarpo, pré-morto.

  • Alicia receberá 1/2;
  • José 1/3;
  • João 1/3;
  • Poli e Manu dividirão o 1/3 que caberia a Policarpo, recebendo 1/6 cada um.

 

O princípio da igualdade entre os filhos

Desde a Constituição Federal de 1988 (art. 227, § 6º), não há distinção entre filhos havidos dentro ou fora do casamento, ou por adoção. Todos concorrem igualmente na herança.

O STJ, em decisões como o REsp 1.123.012/PR, ampliou ainda mais essa proteção, reconhecendo efeitos sucessórios inclusive para filhos socioafetivos.

Assim, independentemente da origem da filiação, todos os filhos concorrem entre si e com o cônjuge sobrevivente.


Jurisprudência relevante

A jurisprudência do STJ e do STF tem sido decisiva para a interpretação das regras de concorrência:

  • STJ, REsp 1.382.170/SP: reconheceu que o cônjuge casado sob separação convencional concorre com os descendentes.
  • STJ, REsp 1.615.747/RS: reafirmou que, no regime da comunhão parcial, o cônjuge só herda bens particulares do falecido.
  • STF, RE 878.694/MG (Tema 498): fixou a equiparação sucessória entre cônjuge e companheiro, garantindo à união estável o mesmo tratamento da sucessão no casamento.

Essas decisões demonstram uma tendência jurisprudencial de ampliar a proteção ao cônjuge sobrevivente, reforçando seu papel de herdeiro necessário.


Exemplos práticos

Para ilustrar:

Exemplo 1:
Carlos, casado em comunhão universal de bens, falece deixando três filhos.

  • O cônjuge não concorre na herança (já é meeiro de todos os bens comuns).
  • Os três filhos herdam em igualdade.

Exemplo 2:
Maria, casada em comunhão parcial de bens, falece deixando bens adquiridos antes do casamento e dois filhos.

  • O cônjuge já é meeiro dos bens comuns.
  • Sobre os bens particulares, concorre com os filhos em igualdade de condições.

Exemplo 3:
João, casado em separação convencional de bens, falece deixando dois filhos.

  • Além de manter seu patrimônio exclusivo, o cônjuge sobrevivente herdará em concorrência com os filhos, dividindo igualmente a herança.

 

Planejamento sucessório

O tema da concorrência da esposa com os filhos revela a importância do planejamento sucessório. A escolha do regime de bens no casamento, muitas vezes feita de forma automática, tem efeitos profundos na partilha de bens.

A elaboração de testamentos, a realização de doações e a definição consciente do regime patrimonial podem evitar litígios e inseguranças futuras, especialmente em famílias recompostas.


Conclusão

A concorrência da esposa na herança dos filhos é uma realidade jurídica que reflete o esforço da lei em proteger tanto os descendentes quanto o cônjuge sobrevivente.

A análise do art. 1.829, I, CC, em conjunto com a jurisprudência consolidada, demonstra que:

  • os filhos ocupam a prioridade sucessória;
  • o cônjuge é chamado a concorrer em diversas hipóteses;
  • o regime de bens é determinante para definir a extensão dessa concorrência.

Essa proteção legal busca equilibrar a preservação do patrimônio familiar com a solidariedade que deve perdurar mesmo após a morte, assegurando direitos ao cônjuge e aos descendentes.


Referências Bibliográficas

  • BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Extraído de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm (Consultado no dia 14/09/2025 às 10h05).
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.382.170/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 28 de maio de 2013. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 10h15).
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.615.747/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 22 de novembro de 2016. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 10h20).
  • Supremo Tribunal Federal. RE nº 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 10 de maio de 2017 (Tema 498). Extraído de: Supremo Tribunal Federal (Consultado no dia 14/09/2025 às 10h25).
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.123.012/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de outubro de 2009. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 10h30).
  • GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume 7: Direito das Sucessões. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
  • VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2021.