Artigos | Postado no dia: 15 setembro, 2025
Os primeiros herdeiros: os filhos

Quando alguém falece, a lei estabelece que a herança seja destinada, em primeiro lugar, aos filhos. Mas como funciona quando há cônjuge sobrevivente?
Texto Explicativo
A sucessão legítima no direito brasileiro encontra seu alicerce na ordem da vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil de 2002. Essa ordem estabelece, de maneira hierarquizada, quem são os chamados a receber os bens de uma pessoa falecida quando não há testamento, ou quando este não abrange todo o patrimônio.
Em primeiro lugar, a lei determina que a herança seja destinada aos descendentes do falecido – categoria que abrange filhos, netos e bisnetos – sempre observada a possibilidade de concorrência com o cônjuge sobrevivente. Essa regra, por si só, já impõe a necessidade de se compreender não apenas quem são os descendentes, mas também como se dá a divisão do patrimônio entre eles e qual é a extensão da participação do cônjuge na sucessão.
O fundamento legal: art. 1.829, I, do Código Civil
O artigo 1.829, inciso I, do Código Civil dispõe:
“A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.”
Dessa leitura, extraem-se três conclusões importantes:
- a) os descendentes são os primeiros chamados à herança;
- b) a concorrência do cônjuge depende do regime de bens;
- c) a regra geral é a prioridade dos filhos, com exceções pontuais em favor do cônjuge.
Portanto, em regra, os filhos herdam sempre, mas em determinadas situações terão que dividir o patrimônio com o cônjuge sobrevivente.
O conceito de descendentes
Descendentes são todos aqueles que integram a linha reta descendente do falecido: filhos, netos, bisnetos e assim sucessivamente.
O artigo 1.836 do Código Civil prevê que o parente de grau mais próximo exclui o mais remoto, salvo o direito de representação. Assim, se o falecido deixa filhos vivos, os netos não herdarão diretamente; mas se um dos filhos já houver falecido, seus descendentes (netos do de cujus) poderão herdar em seu lugar, pela chamada sucessão por estirpe.
Esse mecanismo garante que a linha sucessória seja respeitada, preservando a fração que caberia ao filho pré-morto em favor de sua descendência.
Exemplo prático:
João falece deixando três filhos: Pedro, Ana e José. José havia falecido antes, deixando dois filhos, Paulo e Maria.
- Pedro herdará 1/3;
- Ana herdará 1/3;
- Paulo e Maria dividirão entre si o 1/3 que caberia a José, herdando 1/6 cada um.
A concorrência com o cônjuge
O ponto que costuma gerar maior complexidade está na análise da participação do cônjuge sobrevivente.
O regime de bens do casamento é determinante:
- Comunhão universal: o cônjuge não concorre com os descendentes na herança. Ele já é meeiro de todo o patrimônio, razão pela qual apenas os filhos herdam os bens particulares do falecido.
- Comunhão parcial: o cônjuge só herda bens particulares do falecido. Se o autor da herança possuía bens adquiridos antes do casamento ou recebidos por doação/herança, estes se transmitem também ao cônjuge. Sobre os bens comuns, ele já tem direito à meação, não herdando.
- Separação obrigatória: o cônjuge não concorre. É a situação prevista no artigo 1.641 CC (ex.: casamento de maiores de 70 anos). Nesses casos, aplica-se a Súmula 377 do STJ, reconhecendo a meação, mas afastando o direito sucessório.
- Separação convencional: aqui reside uma importante evolução jurisprudencial. O STJ consolidou o entendimento de que o cônjuge, mesmo casado sob separação convencional, é herdeiro em concorrência com os descendentes (REsp 1.382.170/SP).
- Participação final nos aquestos: o cônjuge concorre com os descendentes, recebendo parte da herança além do acerto dos aquestos.
Essa diferenciação reforça que a análise da herança pelos filhos não pode ser feita sem se considerar a figura do cônjuge.
Jurisprudência dos Tribunais Superiores
O Superior Tribunal de Justiça tem papel central na consolidação dessas regras. Entre os julgados mais relevantes, destacam-se:
- STJ, REsp 1.382.170/SP: fixou a tese de que o cônjuge casado sob separação convencional tem direito de concorrer com os descendentes. A decisão consolidou a equiparação entre esse regime e os demais que não excluem o cônjuge.
- STF, RE 878.694/MG (Tema 498): reconheceu a equiparação sucessória entre cônjuge e companheiro, garantindo aos conviventes em união estável os mesmos direitos sucessórios previstos para os casados.
- STJ, REsp 1.615.747/RS: reafirmou que, no regime da comunhão parcial, o cônjuge só herda bens particulares, e não os comuns, sobre os quais já é meeiro.
Esses precedentes mostram como a jurisprudência tem buscado equilibrar a proteção ao cônjuge sobrevivente com o direito prioritário dos descendentes.
A proteção dos filhos como herdeiros necessários
O Código Civil, em seu artigo 1.845, qualifica os descendentes como herdeiros necessários, o que significa que eles têm direito à legítima, ou seja, a metade indisponível do patrimônio do falecido.
Isso implica que o falecido não pode, por testamento ou doação, privar totalmente os filhos da herança. Qualquer disposição que viole esse limite poderá ser considerada nula por prejudicar a legítima.
Esse regime legal assegura a manutenção do núcleo familiar e a proteção patrimonial dos descendentes, mesmo diante da vontade do autor da herança.
Direito de representação
Outro ponto fundamental na herança dos filhos é o direito de representação. Os netos podem suceder o avô na qualidade de representantes do filho pré-morto.
Esse instituto foi preservado pelo Código Civil para garantir a linha sucessória, evitando injustiças. Assim, não importa se o filho morreu antes ou ao mesmo tempo que o pai: seus descendentes poderão herdar a fração correspondente.
Igualdade entre filhos
A Constituição Federal de 1988 consolidou a regra da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º), abolindo qualquer distinção entre filhos havidos dentro ou fora do casamento, ou por adoção.
O Código Civil de 2002 harmonizou-se com esse preceito, prevendo que todos os filhos herdam em igualdade de condições.
O STJ tem reiterado esse entendimento, como no REsp 1.123.012/PR, em que reconheceu o direito de herança a filho socioafetivo.
O impacto do regime de bens
Como visto, a análise da herança pelos filhos exige atenção ao regime de bens do casamento. Esse regime não altera o fato de os descendentes serem chamados em primeiro lugar, mas pode influenciar no valor efetivo da herança, na medida em que o cônjuge pode ou não concorrer com eles.
Essa característica reforça a importância de planejamento sucessório, pois a falta de compreensão sobre esses limites pode gerar litígios familiares.
Conclusão
A herança recebida pelos filhos é o primeiro degrau da vocação hereditária, e seu reconhecimento legal se alicerça em três fundamentos principais:
- a prioridade conferida pelo art. 1.829, I, CC;
- a proteção da legítima assegurada pelo art. 1.845 CC;
- a igualdade entre os descendentes, independentemente da origem da filiação.
Ainda que o cônjuge sobrevivente possa concorrer em determinadas situações, a lei garante que os filhos ocupem o lugar de prioridade na sucessão. Essa proteção legal demonstra a centralidade da família e da solidariedade intergeracional no direito sucessório brasileiro.
Referências Bibliográficas
- BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Extraído de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm (Consultado no dia 14/09/2025 às 09h10).
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- Supremo Tribunal Federal. RE nº 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 10 de maio de 2017 (Tema 498). Extraído de: Supremo Tribunal Federal (Consultado no dia 14/09/2025 às 09h25).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.615.747/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 22 de novembro de 2016. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 09h30).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.415.727/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 03 de dezembro de 2013. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 09h35).
- Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.123.012/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de outubro de 2009. Extraído de: Superior Tribunal de Justiça (Consultado no dia 14/09/2025 às 09h40).
- GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume 7: Direito das Sucessões. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
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