Artigos | Postado no dia: 12 agosto, 2025
Partilha de bens: o herdeiro mais velho tem privilégio na entrega do quinhão?

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O art. 651, IV, do CPC manda que, na partilha judicial, os quinhões hereditários sejam pagos “a começar pelo coerdeiro mais velho”. Mas isso dá ao primogênito algum direito de escolha sobre os bens? Ou é apenas uma formalidade processual?
Texto Explicativo
- A dúvida: privilégio ou formalidade?
O Código de Processo Civil de 2015, no art. 651, estabelece a ordem que o partidor deve observar na elaboração do esboço de partilha: primeiro, pagar as dívidas do espólio; depois, entregar a meação do cônjuge supérstite; em seguida, a meação disponível; e, por fim, os quinhões hereditários, “a começar pelo coerdeiro mais velho”.
A redação do inciso IV pode, à primeira vista, sugerir que o herdeiro mais velho teria um privilégio material, podendo “escolher” bens antes dos demais. Essa interpretação, contudo, não se sustenta quando analisamos a lógica do processo sucessório, o princípio da igualdade entre os herdeiros e a interpretação dada pela doutrina e jurisprudência.
- Interpretação doutrinária
Sílvio de Salvo Venosa é claro ao afirmar que essa ordem cronológica não confere qualquer vantagem patrimonial. Trata-se de uma diretriz procedimental para o partidor, sem impacto na qualidade ou no valor dos bens atribuídos a cada herdeiro. Segundo ele, “não se pode privilegiar um herdeiro com um bem de alta valorização e prejudicar outro com bem de fácil deterioração”. A igualdade de tratamento é reforçada pelo art. 2.017 do Código Civil, que impõe a busca da “maior igualdade possível” na partilha, seja quanto ao valor, seja quanto à natureza e qualidade dos bens.
Carlos Roberto Gonçalves segue o mesmo raciocínio: a menção ao herdeiro mais velho não significa preferência para receber bens mais vantajosos, mas apenas indica uma sequência organizacional. O partidor atua como executor técnico da deliberação judicial, garantindo que todos os quinhões respeitem a proporcionalidade e a equidade definidas pelo juiz.
- A verdadeira regra de preferência: art. 504, parágrafo único, do Código Civil
Se há uma regra efetiva de preferência na atribuição de bens indivisíveis, ela está no art. 504 do Código Civil. O dispositivo, voltado à situação de venda da parte de um condômino a terceiros, estabelece que outro condômino pode exercer o direito de preferência, adquirindo a parte pelo mesmo preço. E, havendo vários interessados, o parágrafo único define a ordem: primeiro, o condômino com benfeitorias de maior valor; depois, o de quinhão maior; e, se houver empate, todos que desejarem poderão adquirir conjuntamente.
Embora o art. 504 trate especificamente da alienação onerosa, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que seus critérios podem ser aplicados por analogia na partilha, quando mais de um herdeiro manifesta interesse no mesmo bem indivisível e, sobre ele possui benfeitorias, como é comum, diga-se de passagem em pequenas propriedade rurais ou mesmo na construção de sua própria residência no “lote dos fundos”.
- O julgamento do STJ no REsp 2.080.842
No Recurso Especial nº 2.080.842, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou justamente a discussão sobre o alcance do inciso IV do art. 651 do CPC. O caso envolvia divergência na atribuição de bens e a alegação de que o herdeiro mais velho teria direito de escolher primeiro.
O relator destacou que:
- O art. 651 estabelece uma ordem procedimental, não um privilégio material;
- A prioridade do herdeiro mais velho na entrega do quinhão não altera o princípio da igualdade, nem dispensa a compensação em caso de desigualdade de valores;
- Em conflitos sobre bens indivisíveis, aplicam-se as regras do Código Civil, especialmente as do art. 504 e, quando cabível, do art. 2.019 (adjudicação e licitação entre herdeiros);
- A função do partidor é meramente técnica e vinculada à decisão judicial que define os quinhões;
- Não há base legal para que a primogenitura influencie na qualidade dos bens atribuídos.
Assim, o STJ reafirmou que o inciso IV não cria privilégio substancial, sendo apenas uma ordem cronológica para o procedimento.
- Igualdade na partilha: base legal e prática
O art. 2.017 do Código Civil impõe que, ao partilhar os bens, observe-se “a maior igualdade possível” quanto a valor, natureza e qualidade. Isso significa que:
- Se um herdeiro recebe bem de maior valor, deve compensar os demais com bens de menor valor ou com dinheiro (colação);
- Não se pode concentrar bens de fácil liquidez ou alta rentabilidade em um só quinhão sem compensação;
- Bens de uso específico podem ser atribuídos a herdeiro com afinidade ou necessidade especial, mas sempre garantindo o equilíbrio do conjunto.
Essa regra é completada por princípios práticos que vêm desde o CPC de 1939, como prevenir litígios futuros e considerar a comodidade dos herdeiros — por exemplo, atribuindo bens contíguos a quem mantém bom relacionamento e evitando a copropriedade quando possível.
- Partilha amigável e judicial: diferenças relevantes
A partilha amigável, prevista no art. 2.015 do CC, é possível quando todos os herdeiros são capazes e concordam com a divisão. Pode ser feita por escritura pública, termo nos autos ou instrumento particular homologado pelo juiz. É mais célere e flexível, permitindo acordos que atendam às particularidades familiares.
Já a partilha judicial, obrigatória quando há divergência ou herdeiros incapazes (art. 2.016 do CC), segue o rito processual: apresentação do esboço de partilha pelo partidor, manifestação das partes, resolução de impasses pelo juiz e homologação final. Nesse contexto, o art. 651, IV, se aplica na ordem de pagamento, mas sem influenciar na qualidade dos bens atribuídos.
7. Conclusão
O inciso IV do art. 651 do CPC não concede qualquer privilégio material ao herdeiro mais velho. A ordem ali prevista é meramente cronológica, servindo para organizar o trabalho do partidor e a sequência de entrega dos quinhões. A partilha deve sempre observar o princípio da igualdade, a prevenção de litígios e a comodidade dos herdeiros, aplicando-se as regras de preferência do Código Civil quando houver disputa por bens indivisíveis.
O entendimento consolidado pelo STJ no REsp 2.080.842 reforça essa visão e serve como guia seguro para advogados, magistrados e partes envolvidas em processos sucessórios: primogenitura não é critério de vantagem na partilha; a igualdade e a proporcionalidade são as verdadeiras balizas.
8. Breve histórico da primogenitura e sua superação no Brasil
A referência ao “herdeiro mais velho” no inciso IV do art. 651 do CPC pode causar estranheza justamente por evocar um instituto que teve enorme relevância em diversos sistemas jurídicos do passado: a primogenitura.
8.1. A primogenitura no direito europeu
A primogenitura foi uma regra comum no direito sucessório europeu, especialmente na Idade Média e na Era Moderna. No direito feudal, sobretudo na Inglaterra, na França e em parte da Península Ibérica, o filho mais velho — geralmente o primogênito homem — herdava a totalidade ou a parte principal das propriedades da família.
O objetivo era manter o patrimônio íntegro, evitando a fragmentação das terras e preservando o poder econômico e político da linhagem. Essa lógica era essencial em uma sociedade estruturada em feudos, onde o poder e a sobrevivência econômica dependiam da manutenção de grandes extensões de terra sob controle unitário.
O modelo inglês do primogeniture assegurava ao primogênito a posse integral dos bens, relegando os irmãos mais novos a buscar sustento em carreiras militares, eclesiásticas ou comerciais. Na França, o droit d’aînesse variava conforme a região, mas em muitos lugares seguia a mesma lógica.
8.2. Influência no direito português e brasileiro colonial
O direito português também conheceu formas de primogenitura, especialmente nas transmissões vinculadas aos morgadios ou capelas, que eram heranças inalienáveis transmitidas ao primogênito. No Brasil colonial, herdeiros mais velhos de famílias abastadas herdavam essas estruturas patrimoniais, garantindo a continuidade das grandes propriedades rurais.
Entretanto, esse sistema gerava profundas desigualdades internas, relegando muitos descendentes a condições econômicas precárias e incentivando disputas familiares.
8.3. Ruptura com a igualdade sucessória
Com o avanço das ideias liberais e o declínio do sistema feudal, as legislações modernas passaram a adotar o princípio da igualdade entre os filhos, independentemente da ordem de nascimento ou do sexo.
No Brasil, o Código Civil de 1916 já estabelecia, como regra geral, a igualdade dos quinhões hereditários, sem qualquer privilégio por primogenitura, salvo raríssimas exceções previstas em leis especiais (por exemplo, sucessões militares ou honrarias de caráter não patrimonial).
O Código Civil de 2002 reforçou essa orientação, extinguindo qualquer resquício de preferência por ordem de nascimento. Hoje, a ordem de vocação hereditária (art. 1.829 do CC) e a partilha (art. 2.017 do CC) baseiam-se na igualdade material, admitindo tratamento diferenciado apenas quando houver causa legal objetiva, como benfeitorias de maior valor (art. 504, parágrafo único) ou necessidade específica de um herdeiro.
8.4. Por que a menção ao “mais velho” permaneceu no CPC?
A presença do termo “coerdeiro mais velho” no art. 651 do CPC não resgata a primogenitura, mas é herança de uma fórmula legislativa antiga. O CPC de 1939 já trazia ordem semelhante para organização da partilha.
Na prática, trata-se de um critério de ordem para a execução dos pagamentos, equivalente a dizer “comece por um determinado herdeiro e siga a sequência”. Não há efeito prático de preferência patrimonial, como já firmou o STJ no REsp 2.080.842.
Essa permanência linguística, contudo, é um exemplo de como certos termos históricos sobrevivem no texto legal mesmo quando sua função original já desapareceu, o que reforça a importância da interpretação sistemática e contextualizada para evitar conclusões equivocadas.
Referências Bibliográficas
- VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
- GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Sucessões. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
- BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Extraído de Planalto (Consultado no dia 11/08/2025 às 08h25).
- BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Extraído de Planalto (Consultado no dia 11/08/2025 às 08h25).
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº 2.080.842, Rel. Min. [indicar relator], julgado em 29 ago. 2024. Extraído de STJ (Consultado no dia 11/08/2025 às 08h25).